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5 de mar. de 2020

Resenha: O Diário de Nisha


Mais de 14 milhões de pessoas morreram durante a violenta Partição da Índia, em 1947. É um conflito que definiu o território do sul da Ásia e ainda é responsável por um dos maiores conflitos geopolíticos atuais. Depois de 200 anos de colonização, a Inglaterra deixou para trás um país dividido entre hindus, muçulmanos e sihks, e foi responsável pelo início de uma das maiores migrações em massa da história.

O Diário de Nisha é uma ficção que poderia muito bem ser verdadeira. Escrito por uma jovem de doze anos, o livro retrata a realidade de uma família que precisa sobreviver enquanto tenta chegar à Nova Índia, deixando para trás sua casa e todos aqueles que um dia conheceram, já que seu lar não lhes pertence mais e, agora, faz parte de um novo país chamado Paquistão. Uma história tocante e de leitura extremamente fácil, O Diário de Nisha mostra, mais uma vez, como a literatura é imprescindível para a construção de um mundo mais empático e consciente.

"Nisha não é de falar muito. Quietinha e reservada, prefere observar as pessoas ao seu redor e anotar os detalhes do cotidiano em seu diário, onde pode ser ela mesma. E ser ela mesma não é nada fácil no epicentro da Partição da Índia, que, após séculos de tensão religiosa, atinge seu ápice criando dois estados independentes do governo britânico: a Índia (maioria hindu) e o Paquistão (maioria muçulmana).
Parte hindu e parte muçulmana, Nisha não sabe muito bem a qual lugar pertence, e não entende os desdobramentos políticos deste momento tão crucial da história. Por que hindus e muçulmanos estão brigando tanto entre si? Por que milhares de pessoas precisam abandonar seus lares? E por que tantas acabam morrendo ao atravessar as fronteiras?
Com as tensões criadas pela separação, o pai de Nisha decide que é perigoso demais para eles permanecerem no lugar que, agora, se tornou o Paquistão. É neste cenário turbulento que Nisha e sua família — o irmão Amil, a avó e o pai — embarcam no primeiro trem, rumo a um novo lar."

FICHA TÉCNICA
Título: O Diário de Nisha
Autora: Veera Hiranandani
Páginas: 288
Ano: 2019
Editora: DarkSide Books
Nota: 5
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LIVRO CEDIDO EM PARCERIA COM A EDITORA




Imagine-se vivendo em perfeita harmonia com seus vizinhos, amigos e familiares. Você tem uma casa, uma rede de contatos, uma rotina. Você conhece tudo a sua volta e vive tranquilamente. Você é uma criança que está apenas começando a entender um pouco mais sobre a vida e seu lugar nesse mundo. Você mal se conhece ainda, mas está descobrindo. De repente tudo o que você conhecia mudou. As pessoas ao seu redor começam a parecer perigosas, seus vizinhos estão marcando uns aos outros e você não sabe se será o próximo e pelas mãos de quem poderia morrer, você precisa deixar o lugar que chamou de lar por toda a vida, abandonar as pessoas que conhecia. O país que você chamava de Índia já não existe mais como antes. De um dia para o outro você agora ocupa um território que pertence a outro país e precisa fugir, caso contrário, poderá ser morto. É esse o contexto que vive Nisha, uma jovem indiana de 12 anos, que passa a registrar esses acontecimentos e sua própria confusão interior em um diário, dedicado à sua falecida mãe.

"Nunca tive um diário. Quando Kazi me deu esse, disse que era hora de começar a escrever as coisas, e que eu era a pessoa certa para isso. Ele falou que alguém precisa fazer um registro das coisas que vão acontecer, porque os adultos vão estar muito ocupados. Não sei o que ele pensa que vai acontecer, mas decidi que vou escrever no diário todos os dias, se puder." Página 11


Acredito que livros narrados pela visão de crianças dão um toque ainda mais especial a uma história. É difícil conseguir capturar a essência da inocência genuína de uma criança e, mesmo que em alguns momentos Nisha pareça bem madura para sua idade, Veera Hiranandani consegue fazer com que o leitor se conecte de forma impressionante com a jovem indiana. O Diário de Nisha é todo narrado por meio de páginas do diário da jovem e é impressionante como conseguimos ter uma visão nem um pouco restrita do contexto em questão. Mesmo que seja uma narração em primeira pessoa, com sentimentos e visões limitadas à realidade da protagonista, a forma como ela descreve os acontecimentos permite que o leitor tenha um panorama bem completo, dentro dos limites da proposta do livro.

Livros escritos pelo olhar de uma criança são sempre emocionantes de jeitos sutis, mas O Diário de Nisha é tocante ao retratar a falta que uma jovem menina sente de sua mãe. A maneira doce e inocente com a qual ela conversa com uma mulher que não pôde conhecer, ainda mais em um contexto tão extremo quanto como a partição da Índia, cercada de conflitos religiosos e mudanças políticas constantes.


Logo nas primeiras páginas Nisha conta que recebeu de presente o diário como uma forma de registrar o que aconteceria no futuro, que os adultos estariam muito ocupados para registrar tudo dessa forma. E, mesmo sendo uma ficção, é fácil se sentir sugado para dentro do contexto histórico em questão. Nisha consegue levar o leitor para a Índia de 1947 e fazer com que tenhamos acesso a uma parte mais imparcial da história, vista pelos olhos confusos, inocentes e curiosos de uma menina de doze anos. É uma forma interessante de abordar conflitos que costumam ser tão parciais, de forma a despertar a empatia no leitor, mesmo que ele já tenha acesso ao desenrolar da história como ela de fato aconteceu.

No começo do livro já é possível perceber os conflitos religiosos e a intolerância crescente entre hindus, muçulmanos e sikhs. Nisha mostra um outro lado, como a partição da Índia foi responsável por dividir povos e culturas que antes conviviam de forma mais pacífica. Em determinado trecho ela conta:

“Eu costumava pensar nas pessoas pelo nome e pela aparência que tinham, ou pelo que faziam. Sábio vende pakoras na esquina. Agora olho para ele e penso: sikh. Meu professor, sir Habib, agora é o professor muçulmano. Minha amiga Sabeen é feliz e fala muito. Agora ela é minha amiga muçulmana. O amigo de papai, dr. Ahmed, é agora um médico muçulmano. Lendo em todo mundo que conheço e tento lembrar se cada pessoa é hindu, muçulmana ou sikh, e quem vai ter que ir embora e quem pode ficar”.

Em trechos assim é possível perceber a forma sutil com a qual ela relata a intolerância e a desconfiança que tomaram conta das comunidades na época e como a realidade mudou de repente de forma tão intensa.



"Ninguém nunca fala sobre você ter sido muçulmana, mamãe. É como se todos tivessem esquecido. Mas eu não quero esquecer. A verdade mais verdadeira é que não conheço outras crianças cujos pais tenham religiões diferentes. Deve ser uma coisa estranha sobre a qual ninguém quer falar. Acho que somos hindus porque papai e dadi são. Mas você ainda é parte de mim, mamãe. Para onde vai essa parte?" Página 30


Veera Hiranandani contou, em entrevista ao blog da DarkSide, a história que inspirou O Diário de Nisha: "Meu pai e sua família tiveram que deixar sua casa em Mirpur Khas durante a Partição da Índia. Ouvi meu pai, minhas tias e tios contando essa história enquanto crescia – várias semanas depois da Independência, meu pai, seus quatro irmãos e irmãs e sua mãe decidiram deixar o Paquistão e passaram pela nova fronteira de trem. Meu avô teve que ficar para trás. Ele era médico no hospital da cidade de Mirpur Khas e eles não queriam que ele fosse embora até encontrarem um substituto, mas algumas semanas depois, ele decidiu ir embora porque estava preocupado com a família. Eles perderam a casa e a comunidade onde viveram, mas conseguiram chegar em segurança do outro lado. Muitas pessoas não conseguiram."

A história é contada por vencedores. Mas onde vão parar as narrativas daqueles que não tinham nada a ganhar com um conflito imposto? Esse é um questionamento presente de forma sutil ao longo de toda a narração. Isso porque, como mencionado em alguns momentos, Nisha, uma criança, foi responsável por registrar tudo o que acontecia naquele momento, em sua bolha familiar. Entretanto, quantas milhões de pessoas viveram histórias semelhantes que jamais serão contadas e/ou descobertas?

A Partição da Índia representa a maior migração forçada da história e resultou na morte de mais de 14 milhões de pessoas. Pelo pouco que Nisha relata da violência, mesmo sob o véu da inocência de uma criança, é possível entender o porquê. Mesmo retratando um contexto histórico da primeira metade do século passado, grande parte dessas disputas territorialistas e religiosas ainda continuam vivas e fortes. O Diário de Nisha é um livro atemporal e, portanto, uma leitura necessária.



É interessante observar alguns elementos que se repetem ao longo de todo o livro. A presença silenciosa de Gandhi, por exemplo, é constante em meio às reflexões de Nisha sobre seu próprio comportamento. Como se Gandhi fosse uma presença constante, responsável por representar uma escala de bondade e um parâmetro de o que Nisha deveria ou não fazer.

Além disso, a culinária e o ato de cozinhar são elementos bem marcantes de toda a narrativa. Além de ser interessante, para o leitor, ter contato com pratos típicos e comidas indianas, é interessante observar como Nisha se apoia na cozinha como uma forma de se sentir bem e de ajudar. Como uma criança, se ver em um contexto de guerra e divisão tão brutal, é fácil sentir se sentir impotente e inútil, palavra usada muitas vezes por Nisha. O fato de poder cozinhar a aproxima das outras pessoas e a ajuda a se sentir melhor, sentir que está sendo de alguma valia para sua família. O ato de comer em família tem um significado forte para os indianos e isso se mostra toda vez que Nisha prepara um prato para sua família, mesmo no mais hostil dos momentos e ambientes.


Gosto de sempre frisar a importância da literatura na criação de um pensamento crítico, no entendimento de questões locais e universais, e em seu uso como poderosa ferramenta empática. O Diário de Nisha cumpre muito bem esse papel e mostra, mais uma vez, como um livro pode ensinar a respeito de um momento histórico, pode despertar a compaixão em uma pessoa que talvez nunca tivesse contato com essa realidade, e pode abrir espaço para as narrativas mais diversas, sejam elas quais forem.

O livro ainda conta com um rico glossário de palavras usadas comumente na Índia e no Paquistão. Além de entender melhor expressões já habituais para esses povos, é mais uma forma de enriquecer um livro já bem completo, dentro de sua proposta, e mostrar a riqueza dessas culturas que acabam parecendo muito distante para nós, brasileiros.



O Diário de Nisha é um livro que poderia muito bem ser adotado em escolas. Ao optar por retratar uma das maiores migrações em massa da história de maneira tão empática, pelos olhos de uma criança dividia entre os dois principais povos em conflito, o leitor tem acesso a uma gama de informações de um jeito único e extremamente didático.

O Diário de Nisha explica de forma simples os fatos que levaram à partição da Índia, ao mesmo tempo em que aprofunda no questionamento humano que envolve esse conflito que mudou para sempre o mapa da Ásia, da Índia e, a nível local, da organização das famílias que viviam ali até então. Um livro delicado, emocionante e muito gostoso de ler.

"Sabe o que eu queria, mamãe, mais que tudo no mundo? Poder passar só um dia com você, então eu saberia como é sua pele de perto e o som da sua voz. Eu conheceria seu cheiro, como sei que o papai tem sempre o cheiro do sabonete do hospital, de fumaça e dos pistaches que ele carrega no bolso. Então eu poderia pensar nisso quando escrevo estas palavras, e quando tento pegar no sono." Página 43

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