Resenha: Maternidade

by - 14:42


Maternidade é um dos livros mais marcantes dos últimos tempos. Escrito de forma visceral, o livro acompanha a angústia de uma mulher que tenta se decidir entre ser ou não ser mãe. É uma narrativa despretensiosa que traz uma profundidade ímpar à discussão, capaz de fazer o leitor se perder em suas páginas e em si mesmo. Saiba mais com a resenha de Maternidade!

"Um romance provocador e corajoso sobre o desejo e o dever de procriar, escrito pela brilhante escritora canadense Sheila Heti. Em Maternidade, Sheila Heti reflete sobre os ganhos e as perdas para uma mulher que decide se tornar mãe, tratando a decisão que mais traz consequências na vida adulta com a franqueza, a originalidade e o humor que lhe renderam reconhecimento internacional por seu livro anterior, How Should a Person Be?. Ao se aproximar dos quarenta anos, numa fase em que todas as suas amigas se perguntam quando irão ter filhos, a narradora do romance intimista e urgente de Heti ― no limiar entre a ficção e autorreflexão ― questiona se aquela é uma experiência que ela quer ter. Numa narrativa que se estende ao longo de muitos anos, moldada a partir de conversas com seus pares e seu parceiro e de sua relação com os pais, ela se vê em um embate para fazer uma escolha sábia e coerente. Depois de buscar ajuda na filosofia, no próprio corpo, no misticismo e no acaso, ela descobre a resposta num lugar bem mais familiar do que imaginaria."

FICHA TÉCNICA
Título
: Maternidade
Autora: Sheila Heti
Páginas: 312
Ano: 2019
Editora: Companhia das Letras
Nota: 5
Compre: Amazon
Comprando por esse link você ajuda e incentiva o Nostalgia CinzaLIVRO CEDIDO EM PARCERIA COM A EDITORA






Maternidade traz uma das formais mais viscerais de falar sobre o desejo de ser ou não mãe. É um dos livros mais intensos dos últimos tempos e uma leitura obrigatória, tanto para mulheres e pessoas que podem gestar, quanto para homens que precisam compreender todas as pressões, questionamentos e sentimentos por trás da escolha de uma mulher de gestar e/ou de se tornar mãe.

"Será que eu quero filhos porque quero ser admirada como o tipo admirável de mulher que tem filhos? Ou porque quero ser vista como uma mulher normal, ou porque eu quero ser uma mulher do melhor tipo, aquela que não tem só o trabalho, mas tem também o desejo e a capacidade de cuidar, tem um corpo que pode produzir bebês e ainda é uma pessoa com quem outra pessoa quer fazer bebês?" Página 34


O livro é escrito praticamente transcrevendo os pensamentos de uma mulher debatendo com ela mesma sobre ter ou não ter filhos. É uma estrutura narrativa bem diferente e completamente inusitada. Caso o leitor ignore a sinopse, pode muito bem acreditar que tem em mãos um relato extremamente pessoal (apesar de eu ainda acreditar que muito da autora está escondido por trás de suas palavras). Entretanto, o livro é um romance escrito em primeira pessoa e de forma bastante desconexa, por muitas vezes. Escrito em forma de diário e, ao mesmo tempo, transcrição de um diálogo mental entre a protagonista e uma espécie de "cara ou coroa", é difícil se localizar na leitura. A princípio esse recurso pode parecer bem estranho e confuso, mas ao deixar de lado todo e qualquer pressuposto de estilo narrativo definido, é fácil entrar na mente da protagonista e se perder em seus devaneios.

É como se tivéssemos tendo acesso a um diário, com os pensamentos mais íntimos da mulher em questão. Em determinamos momentos chega até a ser desconfortável, como se não tivéssemos direito a ter acesso a pensamentos e experiências tão particulares. Precisei me relembrar que era uma ficção ao longo de todo o livro. 

"Por que continuamos tendo filhos? Por que era importante para o médico que eu tivesse um? Uma mulher precisa ter filhos porque ela precisa estar ocupada. Quando penso em todas as pessoas que querem proibir o aborto, isso parece significar apenas uma coisa: não é que eles queiram uma nova pessoa no mundo, o que eles querem é que aquela mulher tenha o trabalho de criar um filho, mais do que querem que ela faça qualquer outra coisa. Há algo de ameaçador em uma mulher que não está ocupada com os filhos. Uma mulher assim provoca certa inquietação. O que ela vai fazer então? Que tipo de problemas ela vai arrumar?" Página 44


A autora questiona, a todo o tempo, a construção da ideia de maternidade e, além de refletir sobre a obrigatoriedade desse sentimento, ela também menciona um tipo diferente de maternidade com uma mãe ausente e um pai que se encaixa nos padrões que geralmente definimos as mães. Ela baseia grande parte de suas reflexões em suas próprias experiências de vida e traumas. Além de dividir o livro em curtos capítulos, ela divide em partes. Algumas levam o nome dos lugares onde ela está ou onde aconteceram as reflexões, outros são nomeados de acordo com a fase do ciclo menstrual que ela estava: folicular, TPM, sangramento etc.

"Quando eu era mais jovem, pensando se queria ter filhos ou não, sempre voltava a essa fórmula: se ninguém tivesse me falado nada sobre o mundo, eu teria inventado os namorados, eu teria inventado o sexo, as amizades, a arte. Eu não teria inventado a criação de filhos. Eu precisaria inventar todas essas coisas para satisfazer meus anseios reais, mas se ninguém jamais me contasse que uma pessoa é capaz de produzir outra pessoa, e cria-la até que ela se torne um cidadão, isso jamais teria me ocorrido como uma forma de passar o tempo. Na verdade, soaria como uma tarefa a ser evitada." Página 53

Muitos acreditam que os sonhos carregam significados poderosos sobre o inconsciente e sobre verdades ocultas. E a questão dos sonhos é muito presente ao longo de todo o livro. A protagonista transcreve seus sonhos enquanto faz observações sobre seus significados, sobre a forma como se sentiu ao acordar, sobre a reação de seu marido ao compartilhá-los. Os sonhos, além de ajudarem a personagem a entender melhor o que ela mesma carrega dentro de si, servem como fio narrativo ao longo de grande parte do livro. É mais um recurso interessante e inusitado usado pela autora que se encaixou muito bem na proposta.


Um dos maiores trunfos de um autor é fazer com que o leitor sinta na pele o que vive seu personagem. Em Maternidade, Sheila Heti consegue fazer exatamente isso comigo. É angustiante sentir os conflitos internos da narradora, dividida entre ter ou não ter filhos, sem saber se as suas opiniões são de fato suas ou se são fruto de uma obrigatoriedade biológica imposta pela sociedade. Como mulher, ao me deparar com os mesmos questionamentos da protagonista, fui puxada para dentro de sua mente, sem saber ao certo que caminho ela seguiria.

"Um filho não é a combinação entre você e o seu parceiro, mas uma realidade em si, separada e singular - um foco de consciência distinto sobre o mundo. Não acho que eu já tenha sentido algo assim - que meu corpo, minha vida, pertenciam a mim." Página 55


Maternidade é um livro extremamente profundo do ponto de vista das nuances que envolvem a escolha (ou a falta dessa escolha) de ser mãe. O livro aborda diversos assuntos de maneira bem intensa, mesmo que o foco não seja discorrer a respeito desses tópicos. Sheila Heti fala sobre heranças, sejam elas emocionais, biológicas ou familiares; ancestralidade, e até que ponto a linhagem familiar interfere nas nossas escolhas como mulheres; superstição, e como ela afeta a forma como lidamos com a nossa realidade; intuição, e a diferença entre o que vem de nós e o que nos é imposto; autoconhecimento, e um longo e doloroso processo de se despedaçar para se conhecer de verdade. A autora expõe alguns dos pensamentos mais profundos de sua protagonista e é assustador como é fácil se ver em cada questionamento, angústia e reflexão.

Além disso, a maternidade compulsória é um problema enfrentado por mulheres ao redor do mundo e é doloroso perceber como a maternidade também é extremamente romantizada, incluindo na ficção. Existe uma pressão social, familiar, pessoal e emocional que prevê que as mulheres devem desempenhar um papel de progenitora uma vez que a natureza lhe concedeu um corpo com potencial de gestar outro ser humano.

"Eu esperava que, no momento em que me casasse, algo aparecesse ou nascesse - algo mágico, uma bolha ao nosso redor, a reluzente bolha do casamento. Mas, assim como o cadáver dissecado revelou uma ausência surpreendente para a minha mãe, no momento em que me casei, senti que haviam me enganado: o casamento não era nada além de uma simples ação humana que eu jamais conseguiria cumprir." Página 89


A protagonista é um ponto à parte. Apesar de não ser uma das pessoas mais encantadoras do mundo devido à sua forma de se relacionar com os outros, de julgar aqueles que fazem parte de sua vida, ela traz reflexões e questionamentos extremamente pertinentes. Levando em conta que o livro se trata de uma ficção, é difícil encontrar personagens com tantas camadas e com quotes tão intensos e marcantes quanto ela. Ao mesmo tempo em que eu me via irritada com seus comportamentos, eu conseguia entender de onde vinha aquela dor. Mesmo não sendo uma das protagonistas mais apaixonantes de todas, é um privilégio entrar em sua mente e poder fazer parte dessa jornada tão íntima. 

As melhores partes do livro são, sem dúvidas, as frases escritas pela autora em meio aos devaneios de sua protagonista. Sheila Heti nos presenteia com algumas das melhores citações dos últimos tempos. Perdi a conta de quantas vezes rabisquei suas palavras em um papel, no bloco de notas do meu celular, nos stories do meu Instagram pessoal etc. Em Maternidade, Heti faz poesia com a dor de uma mulher dividida, e obriga o leitor a olhar para si mesmo e para as certezas que ele tão cegamente havia enraizado.

Maternidade um livro fácil de levar na bolsa e de interromper a leitura. É possível interromper a leitura com frequência caso seja preciso sem perder a qualidade do texto e o sentido do livro como um todo. Ao mesmo tempo que é viciante passar as páginas, vem a tentação de ir guardando um pouco as pílulas de sabedoria, os “tapas na cara” que a autora solta ao longo das páginas. É interessante se questionar até que ponto o livro é autobiográfico e até que ponto estamos lendo um livro que ecoa alguns de nossos próprios pensamentos, inseguranças e reflexões.

"O corpo feminino, em particular, expressa o tempo e se aproxima dele. Quando o sangue sai, outro mês passou. Erica disse: 'Na verdade, acho que a 'alma do tempo' é uma descrição bem exata a TPM. Não é só uma metáfora. Ela É a alma do tempo. Por isso que é tão desagradável." Página 120


Maternidade não é um livro para aqueles que optam por histórias redondinhas, enredos muito bem definidos, estruturas narrativas perfeitamente organizadas e coesas. É quase um livro experimental, mas essa característica combina perfeitamente com a própria linguagem da autora e com tudo o que o livro se propõe a abordar. É um mergulho na mente humana: crua, desconexa, frenética e imperfeita. É um livro diferente de tudo o que tenho lido e diferente de tudo que já li sobre o assunto. Uma leitura profunda e essencial. 

Gostou do livro e gostaria de conhecer outro título que também aborda a questão da maternidade e do poder de escolher ser ou não ser mãe? Então confira a resenha de As Horas Vermelhas

"Talvez o que eu esteja tentando fazer, ao escrever isso, seja construir um bote que me levará até certo ponto por certo tempo, até que as minhas perguntas não possam mais ser feitas. Este livro é um bote salva-vidas para me levar até lá. Por mim, isso é tudo que ele precisa ser - não um grande transatlântico, só uma balsa. Ele pode se despedaçar completamente depois que eu desembarcar na outra margem." Página 211


E se você quiser ficar por dentro de tudo que rola aqui no Nostalgia Cinza em primeira mão e de um jeito bem simples e objetivo, então assine a newsletter! Prometo não encher sua caixa de entrada e ainda mandar conteúdos bem legais ;)

You May Also Like

0 comments