O
singelo tilintar do molho de chaves era o único som que ecoava no hall de
entrada. Sua bolsa parecia pesar mais a cada segundo e ela temia que suas
sapatilhas fossem arrancar pedaços de sua pele se ficasse mais um minuto com
elas nos pés.
Puxando
a bolsa para cima do ombro mais uma vez, enfiou a chave na fechadura e abriu a
porta empurrando-a desajeitadamente com o ombro livre. Colocou as sacolas de
plástico no chão para que pudesse acender as luzes com mais facilidade.
Bastaram alguns segundos para que ela escutasse um miado dócil. Instantes
depois uma bolinha de pelos preta saiu da escuridão do corredor e praticamente
saltitou ao seu encontro. Ela sorriu e pegou seu gato no colo quando ele se
esfregou em suas panturrilhas e fez menção de arranhar sua calça caso ela não o
deixasse subir.
Após
um longo dia como aquele tudo o que ela precisava era desse pequeno gesto de
carinho do animalzinho. Levou o nariz até o pelo do gato e sentiu aquele cheiro
precioso que se assemelhava a madeira e feno. Sorriu e colocou seu amigo no
chão antes de pegar as sacolas e ir para a cozinha.
Colocou
as sacolas em cima da bancada. Havia comprado alguns pães para o café da manhã
do dia seguinte, alguns pacotes de comida instantânea e algumas fatias de
queijos e salame. Aquilo deveria servir para nutri-la pelos próximos dois dias.
As
tigelas de seu gato estavam parcialmente vazias. A de água mostrava que todo o
leite que ela colocou ali tinha sido devidamente tomado e apenas algumas
bolinhas da ração continuavam no pote.
-
Pelo visto você teve um dia cheio, hein? – Se dirigiu ao gatinho que a
observava do chão. – Imagino que você deve estar exausto depois de tanto comer
e dormir?
O
bichinho apenas mexeu as orelhas em resposta enquanto a olhava fixamente.
Abriu
uma prateleira e pegou o saco de ração de seu gato. Ao ouvir o barulho
característico do plástico, seu gato se agitou e mal deixou que ela chegasse
nas tigelas enquanto se esfregava em seus tornozelos. Ela despejou um pouco de
ração ali e ele se ocupou de comer. Depois de guardar o saco ela foi até a
geladeira e fez o mesmo com o leite. Deixou que seu gato se esbaldasse e
começou a guardar suas compras.
Pegou
uma taça e encheu quase todo o copo com vinho. Que se danem as convenções. Ela
tinha sorte de não ter deixado a taça de lado e tomado direto da garrafa.
Naquele dia era a vontade que sentia. Apagou a luz da cozinha, pegou o esqueiro
e acendeu duas velas na sala.
Sem
nem prestar atenção no CD que escolhia, apertou o play no som que havia ganhado
de sua mãe quando saiu da casa dos pais e se dirigiu até a janela. Largou as
sandálias em algum lugar no meio do caminho.
O
som de um piano preencheu o ambiente silencioso de sua casa. Ela se sentia...
solitária naquela noite. E cansada, exausta na verdade. O dia havia sido cheio,
o que não era nada inédito, mas os desabafos que teve que escutar foram...
difíceis.
Passava
horas e horas da sua vida sentada no pequeno consultório que havia montado para
ela. Tentou fazer com que ficasse o mais confortável e aconchegante possível.
Gostaria de, ao precisar contar seus problemas e pensamentos, entrar numa sala
com um tapete bonito, paredes claras, uma máquina de café nova, flores
enfeitando as mesas e cantos e um divã preto extremamente macio e convidativo.
Ela adorava a sala que havia construído para seus pacientes, mas ultimamente –
e principalmente naquele dia – ela não lhe parecia mais tão confortável e
revigorante assim.
Sentou-se
num banco alto ao lado da janela e respirou fundo algumas vezes. Geralmente não
precisava de muito tempo para que esquecesse as conversas do dia, mas naquele
momento estava sendo particularmente difícil. Apoiou a taça na janela e esfregou
as têmporas massageando-as.
A
noite estava muito bela. Seu apartamento tinha uma vista excelente para a
cidade e todo dia ela agradecia por isso. Em dias como aquele ela precisava de
uma bela vista para apreciar sem precisar sair de casa. O céu estava limpo e,
mesmo com as luzes urbanas, ela conseguia notar algumas tímidas estrelas
enfeitando-o.
Bebeu
um gole generoso de seu vinho e fitou uma luz acessa em um dos prédios à
frente. Tinha aprendido desde cedo que não era nada prudente interiorizar os
problemas de seus pacientes, eles só se acumulariam dentro de si e seria cada
vez mais difícil ficar sã. Ela achava que tinha que virar psicóloga por causa
da sua sensibilidade, mas em noites assim ela começava a acreditar que seria
essa mesma sensibilidade que faria com que procurasse outra vocação.
O
rosto arrasado de uma paciente que acabara de cair em si e percebera que estava
em um relacionamento abusivo; as palavras descrentes de um menino que via seu
pai se embebedando noite e dia; uma menina que estava começando a lidar com seu
transtorno de déficit de atenção e hiperatividade; até mesmo uma mulher que
passara uma hora inteira enumerando todos os itens de sua lista de compras para
o natal. Parecia que todas as vozes ecoavam dentro de sua cabeça e ela sentia
que não havia nada que pudesse fazer para silenciá-las. Precisava ela mesma de
uma hora no divã, mas seu psicólogo estava participando de um congresso em
outro estado. Teria que esperar até a semana seguinte.
Ela
adorava sair da sua cabeça por algumas horas, mas às vezes se esquecia que a
mente dos outros poderia ser tão perturbada quanto a dela. Alguns dias ela conseguia
tranquilamente se desligar de seu trabalho da mesma forma que apagava a lz do
consultório toda vez que saía pela porta. Já em outros ela se condenava por não
conseguir resolver os problemas daqueles que confiavam nela a sua intimidade, a
sua vida particular. Não era o trabalho mais fácil do mundo ser a caixa preta
de segredos alheios.
Um
som parecido com um murmurinho chamou sua atenção. Olhou para o chão e viu seu
gatinho lambendo uma das patas dianteiras e esfregando-a no rosto pequeno. Ela
fez um som com a boca e ele olhou para cima.
Bebeu
mais um gole da sua taça e deixou-a na janela. Bateu de leve em sua coxa com a
mão direita num gesto para que o bichinho subisse. Como era de costume, com um
pulo ele estava em seu colo se esfregando na barriga dela e procurando a posição
mais confortável. Ela acariciou a pele atrás de uma das orelhas do gato e ele
fechou os olhos ronronando contente. Ela sorriu e aquele sorriso deixou as
coisas mais leves. Pelo menos um pouco.
Olhando
novamente para o mundo atrás de sua janela, tentou absorver aquela falsa
quietude da cidade. Cada luz acessa era uma vida diferente acontecendo, era um
ser humano diferente fazendo coisas diferentes. Naquele momento ela se permitiu
simplesmente existir. Respirando fundo ela finalmente conseguiu acalmar sua
mente. Seu coração estava batendo um pouco mais devagar quase como se pudesse
entendê-la.
Um
vento fresco soprou as plantas de sua jardineira ao mesmo tempo em que parecia
acariciar-lhe o rosto. Ela agradeceu mentalmente. O cheiro de concreto nunca
foi tão bem recebido pelos seus sentidos quanto naquele momento.
Ela
não tinha o poder de mudar o mundo, mas tinha aquele momento nas mãos. E
enquanto pudesse se acalmar e servir de consolo para alguém, ela estaria bem.
Enquanto uma mão continuava
acariciando seu pequeno companheiro, a outra brincava de rodar a taça de vinho
entre os dedos. Sem tirar os olhos dos pequenos quadradinhos de luz que mais
lhe pareciam estrelas, ela sentiu o peso do mundo se esvaindo de seus ombros. E
permaneceu ali. Pelo tempo que sentiu que fosse necessário.
A vida acontecia lá fora. Mas ela se
permitiu parar um pouco no tempo e ficar parada enquanto o mundo continuava
girando. Os pequenos barulhinhos que seu gato emitia lembravam-na de que estava
rodeada de vida, de que continuava ali. E naquele momento os sons da cidade
guardavam sua paz e as estrelas observavam seu silêncio. Estava tudo bem. Ela
estava bem.
UAU! Você escreve tão bem! Já pensou em escrever um livro? Eu com certeza leria um livro seu. Essa crônica é tão... singular. Eu pude visualizar cada cena com os mínimos detalhes que você retratou de forma meticulosa (e eu adoro detalhes). Isso é fascinante. Muitas vezes me peguei imaginando como se sentia um psicólogo. Psicologia é uma área que me atrai, mas imagino que, se eu optasse por esta carreira, minha situação seria mais ou menos como a da sua personagem. Parabéns pelo blog. Estou seguindo e já adorando o conteúdo dele! Beijinhos
ResponderExcluirOi, Day! Nossa, muito obrigada pelo comentário, fiquei tão feliz com suas palavras <3 Espero algum dia ter material suficiente para publicar um livro de contos pequenos assim, é meu sonho. Esse é um dos meus "cotidianos" que mais me identifiquei para escrever, acho que me sentiria exatamente dessa maneira se fosse psicóloga. Muito obrigada por seguir, seja muito bem vinda ao Nostalgia Cinza, espero que continua visitando e deixando seus recadinhos por aqui <3
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