Campari e cinzas de cigarro.
Alguns dias
são mais difíceis que outros, ela pensou enquanto se trancava no banheiro para
fugir dos murmúrios.
Aquilo não
era novidade, estava começando a fazer parte da rotina. Era um cotidiano bem
nostálgico para dizer a verdade. Ela sabia muito bem que havia pessoas que
naquele momento estavam bem piores do que ela. Muitos estavam famintos,
machucados, morrendo. Ela tinha consciência de que o inferno de verdade não era
nada parecido com aquilo que ela vivia. Mas para ela, aquele era seu inferno
particular.
Mesmo com a
porta fechada e devidamente trancada, o som de vozes abafadas passava por entre
as frestas e chegava até ela. Palavras indecifráveis, mas ainda assim pesadas e
maculadas. Antes de entrar no banheiro, ela pôde sentir o cheiro do álcool e
das cinzas dos cigarros. Um cheiro familiar, mas que ainda lhe causava náuseas.
O que
acontecia na sala estava fora de seu alcance. Pelo menos era isso que ela
queria acreditar. As pequenas grandes discussões corriqueiras eram algo que ela
evitava a todo custo fazer parte. De um lado, o pai desfrutando dos efeitos da
bebida e dos pensamentos intensos acumulados. Do outro, a mãe com as mágoas e
frustrações sempre contidas.
Sentada com
as costas na porta do banheiro ela se perguntava por que isso era tão comum
quando não deveria ser. As pessoas não deveriam fazer as outras se sentirem um
lixo, principalmente aquelas que juramos amar até que a morte interfira.
É incrível
como alguns goles são capazes de transformar uma pessoa. De onde vieram todas
essas palavras duras? De onde veio essa face raivosa e cheia de ressentimentos?
Por que para ele tudo estava errado e todos não eram o suficiente? Por que para
ela se tornou mais fácil ficar calada e esperar todos os desabafos acabarem
rápido? Não deveria ser assim. Então por que era?
Ligando o
chuveiro, ela não conseguia parar de se perguntar de quem era a culpa de
verdade. Do pai, por não medir as palavras e não olhar para os defeitos que ele
próprio carregava? Ou da mãe, por abaixar a cabeça e segurar todo aquele amor
sem fronteiras na esperança de que ele lhe desse força? Ou quem sabe, era ela
mesma a culpada por não ser o suficiente para apagar toda e qualquer derrota do
passado?
Enquanto a
água quente caía sobre sua pele, ela pedia para que algum dia aquilo tudo
acabasse. Ela estava cansada de semana após semana ter que ouvir discussões sem
base e carregadas de apelos vãos. Aonde tudo aquilo poderia chegar? Ela não
queria mais ter que passar horas procurando defeitos em si mesma que
justificassem toda aquela confusão que sua casa havia se tornado. Será que era
ela a responsável por tudo aquilo? Será que foi ela quem não correspondeu às
expectativas e agora eles sofriam com aquilo? Ou será que ela não tinha
responsabilidade nenhuma naquela confusão e só podia observar enquanto tudo
começava a desmoronar? Honestamente, não sabia o que era pior. Ser protagonista
ou espectadora. Ela só queria alguns bons momentos em família. Momentos
alegres, cheios de risadas e sorrisos e puro amor. Ela não queria mais o álcool
envolvido. Em nada.
Ela
detestava aquela substância maldita. Chegara ao ponto de fugir de todos que
diziam amá-la. Ela cresceu com um trauma e sabia que ele nunca deixaria seus
pensamentos. Era triste. Sim, era.
Sentou no
chão frio e deixou que a água caísse em seu corpo e escorresse por sua pele.
Talvez a água quente fosse capaz de lavar aqueles sentimentos gélidos.
O lado bom
era que a violência física nunca havia acontecido. Nunca acontecia. Ainda bem.
Mas, ela
suspirou, o poder das palavras é algo que sempre a surpreendeu. Ainda mais
ditas por quem sabe como dizê-las.
Um homem
forte usa os punhos. Um homem inteligente usa a voz. Dê a um guerreiro uma arma
e ele saberá exatamente o que fazer com ela. Dê a um general a oportunidade e
ele comandará todos os guerreiros que puderem ouvi-lo. Quem luta, fere. Quem
fala, marca. Ela aprendeu aquilo e era algo que nunca mais esqueceria.
Às vezes
simples palavras mudam tudo. Um soco não é para sempre. Os hematomas perdem a
cor e a sensibilidade eventualmente vai embora. Palavras não. O poder do vento
que traz os sons daqueles que não pensaram antes de soltar suas próprias
verdades é imensurável. Quem pensa mais, sempre terá uma vantagem sobre aquele
que age mais. É uma verdade injusta, mas ainda assim é uma verdade. Ela saberia
se curar de um soco, não de um grito.
O medo de
não ser o suficiente sempre pairava sobre ela. Não havia nada que pudesse fazer
para conter as insatisfações e os lamentos. Ela não podia fazer nada naquele
momento e duvidava que pudesse fazer algo algum dia. Simplesmente era assim.
Ele dizia que aquilo não era um problema. Como aquilo poderia não ser um
problema?
Desligou o
chuveiro e sentiu a corrente de ar arrepiar os pelos de seu corpo. Apropriado.
Quando
começou a se enrolar na toalha, sentiu as familiares lágrimas rolarem por suas
bochechas. Ela quase não percebia mais quando isso acontecia. Ela quase recebeu
as lágrimas com um sorriso camarada. Quase.
As vozes
abafadas haviam cessado. Uma porta havia sido fechada com desgosto. Naquele
momento apenas a televisão preenchia o silêncio ensurdecedor de sua casa. Era
sufocante.
Enquanto sua
mãe fazia um sudoku na varanda e bebericava seu copo de vinho e seu pai apagava
no quarto, ela chorava olhando para seu reflexo no espelho.
Ela não
chorava de tristeza, ela não chorava por causa da mágoa. Ela chorava de raiva,
frustração. Impotência. Ela se perguntava quando tudo aquilo mudaria, quando
tudo enfim chegaria ao fim. Ela queria risadas, em troca ouvia vozes exaltadas.
Ela queria sorrisos, mas via apenas olhares distantes. Tudo o que ela queria
era que aquela constante tensão se dissipasse e desse lugar à paz e à calmaria.
Olhando em
retrospecto, aquelas noites não pareciam nada demais. Até acontecerem.
Ela queria fugir.
Mas fugir para onde? As pessoas fogem para casa quando precisam, mas e quando
sua própria casa é o lugar do qual você quer escapar?
Secando as
lágrimas como havia se acostumado a fazer, ela destrancou a porta e foi para o
quarto. Naquele dia, não foi checar sua mãe. Receberia um sorriso murcho e o
mesmo discurso de exaustão e comodidade. No fundo, ela sabia que sua mãe
ficaria bem. Era uma mulher forte, apenas um pouco ferida, mas forte. Ao
contrário dela mesma.
Deitou na
cama e se enfiou debaixo de seu grosso cobertor. Abraçou um travesseiro e
esperou que as últimas gotas caíssem ali. Com um suspiro profundo ela apagou as
luzes e se encolheu naquele emaranhado de calor.
Fechou os
olhos e abraçando a si mesma jurou que algum dia tudo ficaria bem. A névoa da
mágoa daria lugar a raios de satisfação e aquela presente tensão não existiria
mais. Não seria preciso estar constantemente preparada para uma luta, ela
poderia abaixar a guarda e trancar sua armadura em algum esconderijo de pedra. Algum
dia, tudo se encaixaria e ela perceberia o quão tola foi por sofrer daquela
maneira. Algum dia, tudo ficaria bem.
Algum dia.
2 comments
Quanto amor. <3
ResponderExcluirOi, Nanda <3
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