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3 de mai. de 2014

Mensageira da morte

Um conto sobre renascimentos diários


Ser mensageira da morte era realmente algo deplorável.
Praticamente todo dia ela se via naquela mesma situação. Não importava se os corredores do hospital estavam iluminados pelo sol da manhã, alaranjados por causa do crepúsculo ou sombrios devido à lua da madrugada. O sentimento era sempre o mesmo, a tarefa era sempre igual.
Às vezes a morte vinha diferente. Não estava sempre trajada com surpresa e espanto diante daquilo que ninguém esperava. Às vezes ela aparecia suave e grave como alívio para os que já não suportavam mais sofrer. Outras vezes ela era aguda e cruel para com aqueles que foram pegos desprevenidos. Ela não poupava ninguém, nem mesmo aqueles que nem tiveram a oportunidade de abrir os olhos, nem os que já estavam com os olhos abertos por tempo demais. A morte era o que era e pronto. Todos tinham um dever a cumprir e a morte não era exceção.
Era assim que ela via a morte, como mais uma trabalhadora que tem um motivo para fazer o que faz. Ou talvez não tenha motivo nenhum, apenas faz. É que pensar dessa maneira era um pouco menos amargo, um pouco mais sutil.
Ser uma enfermeira como ela era não estava na lista dos melhores trabalhos do mundo. Não sabia se era karma ou qualquer desculpa do gênero, mas definitivamente não era um trabalho muito feliz. Ela sabia amaciar as palavras, tinha o fardo de saber confortar. Nunca pensou que essas qualidades lhe custariam parte de sua sanidade, mas a vida podia ser bem irônica.
No hospital em que trabalhava, toda vez em que algum paciente morria, era ela a encarregada de levar as boas novas aos pacientes do falecido. Não sabia ao certo como fora encarregada dessa deprimente função. Não sabia como tudo havia começado. Talvez alguma outra enfermeira tenha reparado como ela era com as palavras e tenha lhe pedido uma ajuda. Talvez algum médico ocupado tenha lhe cobrado um antigo favor. O tal do talvez não importava mais. Ela acabou presa àquilo e não tinha mais como escapar.  
Enquanto caminhava por um dos longos corredores a caminho de mais uma família, não conseguia deixar de pensar em como o mundo era imperfeito.  
Aquela sensação de vazio, de solidão para com a humanidade não podia ser normal e ter que ser aquela a semear a notícia de morte várias vezes ao dia não estava fazendo bem à sua sanidade. Não mesmo.
Enquanto observava um pequeno brilho se apagando nos olhos da irmã de um falecido, se perguntou mais uma vez se aquilo era justo.
Trabalhava naquele mesmo hospital desde que se lembrava e nunca havia visto algum paciente corrupto morrer. Não sabia de um décimo da vida daqueles que entravam ali, mas o que sabia não lhe causava repulsa. Tinha um sexto sentido para com as pessoas e podia ver claramente quem de fato merecia o destino que lhe aguardava e quem simplesmente estava no lugar errado na hora errada. Ou talvez no mundo errado, vai saber.
Cada vez que via uma família de bem se despedindo de um ente querido e amado, se perguntava se algum dia sobrariam pessoas amáveis e gentis no mundo. Na sua lógica, se tanta gente boa deixava o mundo todos os dias, como é que ele continuaria se estivesse repleto de maus elementos?
Já havia visto acidentes de carro acabarem com famílias inteiras; assistiu ao câncer sugar lentamente a vida de algumas das pessoas mais interessantes que já conheceu; teve que dizer a um esperançoso pai que sua mulher havia morrido ao dar a luz ao seu primeiro filho; foi aquela que notificou uma família que seu filho mais velho havia cometido suicídio; e várias vezes deu o ultimato de que o ancião da família havia finalmente descansado.
A morte nunca cansava de inventar maneiras de dar as caras num eterno carnaval de escuridão. A morte praticamente se reinventava a cada dia.
Crises existenciais profundas já estavam virando rotina pra ela. Não era nada fácil sentir o que sentia no meio de tanta tragédia. Rezava para ser chamada em alguma emergência, queria poder agir e não apenas falar. Se pudesse escolher seria muda, talvez assim ela não fosse designada para tal tarefa.
Suspirou enquanto caminhava por outro extenso corredor. Colocou as mãos nos bolsos da calça para tentar aquecê-las. Nem estava tão frio.
Enquanto filtrava os sons ao seu redor para se concentrar apenas nos seus passos que ecoavam pelo piso, andou até o único lugar capaz de lhe assegurar sua sanidade num dia como aquele. Assim que chegou àquela ala específica, parou diante do vidro e encostou a palma das mãos ali.
Não se contentando apenas com aquele toque impessoal e gélido, caminhou mais um pouco e abriu a porta da sala de tamanho razoável. Outra enfermeira que estava ali sorriu amigável – ela entendia porque sua companheira de trabalho precisava ir para lá no final de todos os dias. Pousou uma mão em seu ombro num gesto camarada e se dirigiu até o canto da sala onde ainda pudesse prestar atenção em tudo que fosse necessário.
Deixada ali quase sozinha por uns instantes, fechou os olhos por um momento respirou fundo. Ao abrí-los novamente, pôde sentir uma onda de plenitude percorrer seu corpo. Os sons de pequenas respiraçõezinhas preenchiam a sala. O cheiro característico de talco e lavanda era como um bálsamo. Alguns bebês fungavam e se debatiam num sono profundo, outros tentavam se manter acordados para explorar esse mundo diferente e completamente novo. Ela se aproximou de uma incubadora e observou atenta à pequena vida que havia acabado de dar as caras.
Seus olhinhos se abriram lentamente e se focaram nela. De repente bracinhos e perninhas começaram a balançar e se debater insistentemente procurando alguma coisa, alguém. Ela correu os dedos delicadamente pelo rostinho que lhe dedicava toda atenção. Talvez fosse por causa do sono, talvez fosse pela curiosidade, mas o brilho nos olhos daquela criaturinha era inspirador. Aquela inocência, aquela excitação pelo desconhecido era algo que ela sentia falta mais do que tudo no mundo.
Encostou sua mão na pequena mão estendida e sentiu dedos minúsculos se fechando em volta de seu indicador. Sentindo aquele aperto quase insignificante e olhando para o brilho daqueles olhos, ela lembrou o porquê de acordar todos os dias mesmo vivendo no meio de tanta escuridão.
Assim que levantava da cama ela sabia que nada do que aconteceria a partir daí seria fácil. Muito pelo contrário. Ela encontraria dor, sofrimento, vazio e escuridão. Ela sabia que teria que enfrentar tudo de peito aberto porque simplesmente não existia outra alternativa. Sabia disso. Sabia que corria o risco de perder sua sanidade assim que colocasse os pés pra fora da cama. Mas se pudesse se apegar àquela pequena faísca, ela não se importava.
Desde que pudesse, no final do dia, correr para seus portos seguros e respirar fundo, ela sobreviveria. Daria um jeito. Enquanto houvesse algo para empurrá-la abismo abaixo, haveria algo para puxá-la de volta pra cima. Enquanto existisse escuridão, existiria luz.
Olhando para aquela criaturinha recém-nascida, ela sabia que sempre existiria morte. Mas sempre existiria o nascer de algo novo, algo lindo e simplesmente esplêndido. Enquanto soubesse aquilo, estaria segura. Sua sanidade continuaria protegida.

No meio de todos aqueles pensamentos finalmente suaves e calorosos, ela sorriu. 

2 comentários:

  1. Adorei a mensagem... realmente precisamos ter esperança de que algo bom virá, mesmo nos piores momentos (como a perda de alguém querido). Pode ser até difícil de acreditar mas a hora boa também vai chegar.

    Beijos

    www.antesdos40.com.br

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    1. Muito obrigada por comentar, fico feliz que tenha gostado da mensagem!

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