Mensageira da morte
Um conto sobre renascimentos diários
Ser mensageira
da morte era realmente algo deplorável.
Praticamente
todo dia ela se via naquela mesma situação. Não importava se os corredores do
hospital estavam iluminados pelo sol da manhã, alaranjados por causa do
crepúsculo ou sombrios devido à lua da madrugada. O sentimento era sempre o
mesmo, a tarefa era sempre igual.
Às vezes a
morte vinha diferente. Não estava sempre trajada com surpresa e espanto diante daquilo
que ninguém esperava. Às vezes ela aparecia suave e grave como alívio para os
que já não suportavam mais sofrer. Outras vezes ela era aguda e cruel para com
aqueles que foram pegos desprevenidos. Ela não poupava ninguém, nem mesmo
aqueles que nem tiveram a oportunidade de abrir os olhos, nem os que já estavam
com os olhos abertos por tempo demais. A morte era o que era e pronto. Todos
tinham um dever a cumprir e a morte não era exceção.
Era assim que
ela via a morte, como mais uma trabalhadora que tem um motivo para fazer o que
faz. Ou talvez não tenha motivo nenhum, apenas faz. É que pensar dessa maneira
era um pouco menos amargo, um pouco mais sutil.
Ser uma
enfermeira como ela era não estava na lista dos melhores trabalhos do mundo.
Não sabia se era karma ou qualquer desculpa do gênero, mas definitivamente não
era um trabalho muito feliz. Ela sabia amaciar as palavras, tinha o fardo de
saber confortar. Nunca pensou que essas qualidades lhe custariam parte de sua
sanidade, mas a vida podia ser bem irônica.
No hospital em
que trabalhava, toda vez em que algum paciente morria, era ela a encarregada de
levar as boas novas aos pacientes do falecido. Não sabia ao certo como fora
encarregada dessa deprimente função. Não sabia como tudo havia começado. Talvez
alguma outra enfermeira tenha reparado como ela era com as palavras e tenha lhe
pedido uma ajuda. Talvez algum médico ocupado tenha lhe cobrado um antigo favor.
O tal do talvez não importava mais. Ela acabou presa àquilo e não tinha mais
como escapar.
Enquanto
caminhava por um dos longos corredores a caminho de mais uma família, não
conseguia deixar de pensar em como o mundo era imperfeito.
Aquela
sensação de vazio, de solidão para com a humanidade não podia ser normal e ter
que ser aquela a semear a notícia de morte várias vezes ao dia não estava
fazendo bem à sua sanidade. Não mesmo.
Enquanto
observava um pequeno brilho se apagando nos olhos da irmã de um falecido, se
perguntou mais uma vez se aquilo era justo.
Trabalhava
naquele mesmo hospital desde que se lembrava e nunca havia visto algum paciente
corrupto morrer. Não sabia de um décimo da vida daqueles que entravam ali, mas
o que sabia não lhe causava repulsa. Tinha um sexto sentido para com as pessoas
e podia ver claramente quem de fato merecia o destino que lhe aguardava e quem
simplesmente estava no lugar errado na hora errada. Ou talvez no mundo errado,
vai saber.
Cada vez que
via uma família de bem se despedindo de um ente querido e amado, se perguntava
se algum dia sobrariam pessoas amáveis e gentis no mundo. Na sua lógica, se
tanta gente boa deixava o mundo todos os dias, como é que ele continuaria se
estivesse repleto de maus elementos?
Já havia visto
acidentes de carro acabarem com famílias inteiras; assistiu ao câncer sugar
lentamente a vida de algumas das pessoas mais interessantes que já conheceu; teve
que dizer a um esperançoso pai que sua mulher havia morrido ao dar a luz ao seu
primeiro filho; foi aquela que notificou uma família que seu filho mais velho
havia cometido suicídio; e várias vezes deu o ultimato de que o ancião da
família havia finalmente descansado.
A morte nunca
cansava de inventar maneiras de dar as caras num eterno carnaval de escuridão.
A morte praticamente se reinventava a cada dia.
Crises
existenciais profundas já estavam virando rotina pra ela. Não era nada fácil
sentir o que sentia no meio de tanta tragédia. Rezava para ser chamada em
alguma emergência, queria poder agir e não apenas falar. Se pudesse escolher
seria muda, talvez assim ela não fosse designada para tal tarefa.
Suspirou enquanto
caminhava por outro extenso corredor. Colocou as mãos nos bolsos da calça para
tentar aquecê-las. Nem estava tão frio.
Enquanto
filtrava os sons ao seu redor para se concentrar apenas nos seus passos que
ecoavam pelo piso, andou até o único lugar capaz de lhe assegurar sua sanidade
num dia como aquele. Assim que chegou àquela ala específica, parou diante do
vidro e encostou a palma das mãos ali.
Não se
contentando apenas com aquele toque impessoal e gélido, caminhou mais um pouco
e abriu a porta da sala de tamanho razoável. Outra enfermeira que estava ali
sorriu amigável – ela entendia porque sua companheira de trabalho precisava ir
para lá no final de todos os dias. Pousou uma mão em seu ombro num gesto
camarada e se dirigiu até o canto da sala onde ainda pudesse prestar atenção em
tudo que fosse necessário.
Deixada ali
quase sozinha por uns instantes, fechou os olhos por um momento respirou fundo.
Ao abrí-los novamente, pôde sentir uma onda de plenitude percorrer seu corpo.
Os sons de pequenas respiraçõezinhas preenchiam a sala. O cheiro característico
de talco e lavanda era como um bálsamo. Alguns bebês fungavam e se debatiam num
sono profundo, outros tentavam se manter acordados para explorar esse mundo
diferente e completamente novo. Ela se aproximou de uma incubadora e observou
atenta à pequena vida que havia acabado de dar as caras.
Seus olhinhos
se abriram lentamente e se focaram nela. De repente bracinhos e perninhas
começaram a balançar e se debater insistentemente procurando alguma coisa,
alguém. Ela correu os dedos delicadamente pelo rostinho que lhe dedicava toda
atenção. Talvez fosse por causa do sono, talvez fosse pela curiosidade, mas o
brilho nos olhos daquela criaturinha era inspirador. Aquela inocência, aquela
excitação pelo desconhecido era algo que ela sentia falta mais do que tudo no
mundo.
Encostou sua
mão na pequena mão estendida e sentiu dedos minúsculos se fechando em volta de
seu indicador. Sentindo aquele aperto quase insignificante e olhando para o
brilho daqueles olhos, ela lembrou o porquê de acordar todos os dias mesmo
vivendo no meio de tanta escuridão.
Assim que
levantava da cama ela sabia que nada do que aconteceria a partir daí seria
fácil. Muito pelo contrário. Ela encontraria dor, sofrimento, vazio e
escuridão. Ela sabia que teria que enfrentar tudo de peito aberto porque
simplesmente não existia outra alternativa. Sabia disso. Sabia que corria o
risco de perder sua sanidade assim que colocasse os pés pra fora da cama. Mas
se pudesse se apegar àquela pequena faísca, ela não se importava.
Desde que
pudesse, no final do dia, correr para seus portos seguros e respirar fundo, ela
sobreviveria. Daria um jeito. Enquanto houvesse algo para empurrá-la abismo
abaixo, haveria algo para puxá-la de volta pra cima. Enquanto existisse
escuridão, existiria luz.
Olhando para
aquela criaturinha recém-nascida, ela sabia que sempre existiria morte. Mas
sempre existiria o nascer de algo novo, algo lindo e simplesmente esplêndido.
Enquanto soubesse aquilo, estaria segura. Sua sanidade continuaria protegida.
No meio de
todos aqueles pensamentos finalmente suaves e calorosos, ela sorriu.
2 comments
Adorei a mensagem... realmente precisamos ter esperança de que algo bom virá, mesmo nos piores momentos (como a perda de alguém querido). Pode ser até difícil de acreditar mas a hora boa também vai chegar.
ResponderExcluirBeijos
www.antesdos40.com.br
Muito obrigada por comentar, fico feliz que tenha gostado da mensagem!
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